C. O Terceiro Uso da Lei
Esse uso da lei só é válido para os cristãos — ensina-os, a cada dia,
qual a vontade de Deus.17 Segundo o texto de Jeremias 31.33, a
lei de Deus seria escrita na mente e no coração dos crentes:
Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois
daqueles dias, diz o SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também
no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.
Se a lei de Deus está impressa na mente e escrita no coração dos
crentes, qual a função da lei escrita por Moisés? Ela é realmente necessária?
Não basta um coração convertido, amoroso e cheio de compaixão para conhecer a
vontade de Deus? A “lei do amor” e a consciência do cristão orientado pelo
Espírito Santo não bastam? Não seria suficiente apenas termos a paz de Cristo
como árbitro de nossos corações? (Cl 3.15).
Creio que não é bem assim. A lei, assim como no Éden, tem ainda um papel
orientador para os cristãos. Embora eles sejam guiados pelo Espírito de Deus,
vivendo e dependendo tão somente da sua maravilhosa graça, a “lei é o melhor
instrumento mediante o qual melhor aprendam cada dia, e com certeza maior, qual
seja a vontade de Deus, a que aspiram, e se lhes firme na compreensão.”18 A
paz de Cristo como o árbitro dos corações só é clara quando conhecemos com
clareza a vontade de Deus expressa na sua lei. Deus expressa sua vontade na sua
lei e essa se torna um prazer para o crente, não uma obrigação. Calvino
exemplifica com a figura do servo que de todo o coração se empenha em servir o
seu senhor, mas que, para ainda melhor servi-lo, precisa conhecer e entender
mais plenamente aquele a quem serve. Assim, o crente, procurando melhor servir
ao seu Senhor empenha-se em conhecer a sua vontade revelada de maneira clara e
objetiva na lei.
A lei também serve como exortação para o crente. Ainda que convertidos
ao Senhor, resta em nós a fraqueza da carne, que pode ser, no linguajar de
Calvino, chicoteada pela lei, não permitindo que estejamos à mercê da inércia
da mesma.
Vejamos alguns exemplos do relacionamento entre o crente do Antigo
Testamento e o terceiro uso a lei. Primeiramente, podemos observar o prazer do
salmista ao falar da lei no Salmo 19.7-14:
A lei do SENHOR é perfeita e restaura a alma; o testemunho do SENHOR é
fiel e dá sabedoria aos símplices.
Os preceitos do SENHOR são retos e alegram o coração; o mandamento do
SENHOR é puro e ilumina os olhos.
O temor do SENHOR é límpido e permanece para sempre; os juízos do SENHOR
são verdadeiros e todos igualmente justos.
São mais desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são
mais doces do que o mel e o destilar dos favos.
Além disso, por eles se admoesta o teu servo; em os guardar, há grande
recompensa.
Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me
são ocultas.
Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então,
serei irrepreensível e ficarei livre de grande transgressão.
As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis
na tua presença, SENHOR, rocha minha e redentor meu.
Que princípio de morte opera nessa lei, segundo o salmista? Nenhum. Para
o regenerado, o crente no Senhor, a lei é prazer, é desejável, inculca temor,
restaura a alma e lhe dá sabedoria. Isso de alguma forma parece contradizer os
ensinos do Novo Testamento. O terceiro uso da lei é claro para o salmista. A
lei em si não faz nenhuma dessa coisas, mas para o coração regenerado ela traz
prazer e alegria. Na lei o salmista reconhece a sua rocha, o seu redentor,
Jesus Cristo: “rocha minha e redentor meu.”
Observe também o Salmo 119.1-20:
Bem-aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do
SENHOR.
Bem-aventurados os que guardam as suas prescrições e o buscam de todo o
coração; não praticam iniqüidade e andam nos seus caminhos.
Tu ordenaste os teus mandamentos, para que os cumpramos à risca.
Tomara sejam firmes os meus passos, para que eu observe os teus
preceitos.
Então, não terei de que me envergonhar, quando considerar em todos os
teus mandamentos.
Render-te-ei graças com integridade de coração, quando tiver aprendido
os teus retos juízos.
Cumprirei os teus decretos; não me desampares jamais.
De que maneira poderá o jovem guardar puro o seu caminho? Observando-o
segundo a tua palavra.
De todo o coração te busquei; não me deixes fugir aos teus mandamentos.
Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti.
Bendito és tu, SENHOR; ensina-me os teus preceitos.
Com os lábios tenho narrado todos os juízos da tua boca.
Mais me regozijo com o caminho dos teus testemunhos do que com todas as riquezas.
Meditarei nos teus preceitos e às tuas veredas terei respeito.
Terei prazer nos teus decretos; não me esquecerei da tua palavra.
Sê generoso para com o teu servo, para que eu viva e observe a tua
palavra.
Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei.
Sou peregrino na terra; não escondas de mim os teus mandamentos.
Consumida está a minha alma por desejar, incessantemente, os teus
juízos.
De onde vem esse desejo do salmista pelos
juízos de Deus? Da lei que opera sobre o homem natural? Certamente que não. Mas
para o homem regenerado a lei de Deus se torna objeto de desejo da alma. A lei
é maravilhosa para aquele que tem os olhos abertos pelo Senhor. Amar a lei de
Deus é ensino claro das Escrituras para os regenerados. Viver na lei de Deus é
bênção para o cristão, para o salvo. Ela é o nosso orientador para melhor
conhecermos a vontade do nosso Senhor e assim melhor servi-lo. Observe que o
viver segundo a lei de Deus é considerado uma bem-aventurança, é como ter fome
e sede de justiça.
Pergunto: O que seria do cristão sem a lei para orientá-lo? Como
conheceria ele a vontade de Deus? (essa, aliás, é uma das perguntas mais
freqüentes entre os crentes no seu dia-a-dia). Ele seria um perdido, buscando
respostas em seu próprio coração, na igreja, no consenso eclesiástico, na
autoridade de alguém que considerasse superior. Mas o crente tem a lei de Deus,
expressando objetivamente qual é o desejo do Criador para a criatura, qual o
desejo do Pai para seus filhos.
Mas essa visão da lei não nos traz de volta ao legalismo? Estamos então
novamente debaixo da lei? Certamente que não. Para bem entendermos a posição
bíblica expressa por Calvino sobre a lei no pacto da graça, precisamos entender
também como ele relaciona Cristo e a Lei.
V. Cristo e a Lei
Precisamos entender que Cristo satisfez e cumpriu a lei de forma plena e
completa. Ele não veio revogar a lei. Façamos uma breve análise de Mateus
5.17-19:
Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar,
vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem,
nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois,
que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos
homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os
observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus.
Alguns pontos interessantes são demonstrados
por Jesus nessa passagem:
(a) Ele veio cumprir a lei e não revogá-la.
(b) A lei seria cumprida totalmente, em todas as suas exigências e em
todas as suas modalidades (moral, cerimonial e civil) enquanto houvesse sentido
em fazê-lo.
(c) Aquele que viola a lei pode chegar ao Reino dos Céus! (“aquele que
violar...será considerado mínimo no reino dos céus.”) O sermão do monte é um
sermão para crentes e o texto pode ser entendido dessa forma.
(d) Aquele que cumpre a lei será considerado grande no Reino dos Céus.
Como entender essas conclusões de Jesus com
respeito a si mesmo e à Lei?
(a) Ele veio cumprir
a lei e de fato a cumpriu em todas as suas dimensões: cerimonial, civil e
moral. Não houve qualquer aspecto da lei para o qual Cristo não pudesse atentar
e cumprir.Pr. Carlos Borges(CABB)
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