Lei e Graça: Uma visão reformada
Mauro Fernando Meister*
É quase um paradigma para os cristãos modernos associar o Antigo
Testamento à Lei e o Novo Testamento à Graça. Em várias oportunidades propus a
estudantes de seminário e na escola dominical estabelecer o relacionamento
entre os termos e, invariavelmente, a resposta tem sido a seguinte relação:
LEI — Antigo Testamento
GRAÇA — Novo Testamento
I. Estamos sob a Lei ou sob a graça?
Esse questionamento reflete um entendimento confuso do ensino bíblico
acerca da lei e da graça de Deus. Muitos associam a lei como um elemento
pertencente exclusivamente ao período do Antigo Testamento e a graça como um
elemento neotestamentário. Isso é muitas vezes o fruto do estudo apressado de
textos como:
...sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e
sim mediante a fé em Cristo Jesus, também temos crido em Cristo Jesus, para que
fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois, por obras
da lei, ninguém será justificado (Gálatas 2.16).
Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da
lei, e sim da graça (Romanos 6.14).
E, de fato, uma leitura isolada dos textos acima pode levar o leitor a
entender lei e graça como um binômio de oposição. Lei e graça parecem opostos,
sem reconciliação — o cristão está debaixo da graça e conseqüentemente não tem
qualquer relação com a lei. No entanto, essa leitura é falaciosa. O
entendimento isolado desses versos leva a uma antiga heresia chamada
antinomismo, a negação da lei em função da graça. Nessa visão, a lei não tem
qualquer papel a exercer sobre a vida do cristão. O coração do cristão torna-se
o seu guia e a lei se torna dispensável.1 O oposto dessa posição é o
legalismo ou moralismo, que é a tendência de enfatizar a lei em detrimento da
graça (neonomismo). Nesse caso, a obediência não é um fruto da graça de Deus,
uma evidência da fé, mas uma tentativa de agradar a Deus e de se adquirir
mérito diante dele. Exatamente contra essa idéia é que a Reforma Protestante lutou,
apresentando como uma de suas principais ênfases a sola gratia.
No século XVI, os católicos acusavam os
reformadores de antinomistas, de serem contrários à lei de Deus. Até mesmo o
grande reformador Martinho Lutero expressou preocupação quanto a alguns de seus
seguidores que, em seu zelo de proclamar a graça por tanto tempo desprezada
pela Igreja, acabavam por desprezar a Lei. Desde a reforma têm aparecido
movimentos enfatizando um ou outro desses aspectos, lei ou graça, sempre de
forma excludente. Um dos mais recentes movimentos nessa linha, enfatizando a
graça em detrimento da lei, é o dispensacionalismo. Essa forma de abordagem
surgiu no século XIX, caracterizando a lei como a forma de salvação no período
mosaico e o evangelho como a forma de salvação na dispensação da igreja. Esse
é, possivelmente, o movimento que mais influência exerce atualmente na
interpretação do papel da lei e da graça entre os evangélicos ao redor do
mundo.
Em uma direção oposta, outro grande
movimento foi iniciado por Karl Barth, em seu livro God, Grace and Gospel, onde argüi por uma unidade básica entre lei
e graça, direcionando seu pensamento para um novo moralismo.2 Para
termos uma boa idéia de como o debate ainda é atual, em 1993 foi publicado o
livro Five Views on Law and Gospel,
da coleção Counterpoints, no qual cinco escritores evangélicos contemporâneos
expressam diferentes pontos de vista sobre a relação entre a lei e o evangelho
(graça).3 Sem sombra de dúvida, o assunto ainda está muito
longe de apresentar um consenso entre os evangélicos.
As implicações da forma como entendemos a relação entre lei e graça vão
muito além do aspecto puramente intelectual. Esse entendimento vai, na verdade,
determinar toda a forma como alguém enxerga a vida cristã e que tipo de ética
esse cristão irá assumir em sua caminhada. John Hesselink, um estudioso sobre a
relação entre lei e graça, exemplifica que, na década de 1960, os cristãos
proponentes da ética situacionista se levantaram contra leis, regras e
princípios gerais, propondo uma nova moralidade.4 Esse
movimento propõe que a ética das Escrituras não é absoluta, mas depende do
contexto. Nem mesmo a lei moral de Deus é absoluta; ela depende da situação.
Essa proposta surgiu e se desenvolveu dentro do cristianismo tradicional,
alcançando seguidores de todas as bandeiras denominacionais, praticamente sem
restrições. A lei não tem mais qualquer papel determinante na ética cristã; o
que determina a ética cristã é o “princípio do amor,” conclui o movimento. A
conseqüência dessa conclusão é que a graça suplanta a lei. As decisões éticas
devem ser tomadas levando em consideração o princípio do amor. Tome-se por
exemplo a questão do aborto no caso de estupro. Aprová-lo nessas circunstâncias
é um ato de amor baseado no princípio do amor à mãe que foi estuprada. Ou mesmo
a questão da pena de morte. Ela não se encaixa no princípio do amor ao próximo
e, portanto, não pode ser uma prática cristã. Até mesmo situações como o
divórcio passam a ser aceitáveis pelo princípio do amor. A separação de casais
passa a ser aceitável pelo mesmo princípio. O mesmo acontece com o
homossexualismo. Aceitar o homossexualismo passa a ser um ato de amor, e
portanto, essa prática não pode ser considerada como pecado, ou, se assim
considerada, é um pecado aceitável.
Mas seria essa a verdadeira conclusão do cristianismo e o verdadeiro
ensino das Escrituras sobre a lei? É isso que o estudo das Escrituras e o
cristianismo histórico nos ensinam? Nas páginas a seguir avaliaremos o
pensamento de Calvino a respeito dessa questão e a aplicação calvinista
refletida na Confissão de Fé de
Westminster (CFW).
II. O Uso da Lei
Para entendermos bem o uso da lei precisamos entender o que são o pacto
das obras e o pacto da graça. Assim, é prudente começarmos por esclarecer o que
são esses pactos e qual o conceito de lei que está envolvido na questão.
Pacto das Obras e Pacto da Graça5 é
a terminologia usada pela Confissão de Fé
de Westminster6 para explicar a forma de relacionamento
adotada por Deus para com as suas criaturas, os seres humanos. Mais do que
isso, essa terminologia reflete o sistema teológico adotado pelos reformados,
conhecido como teologia federal.7 De forma bem resumida,
podemos dizer que o pacto das obras é o pacto operante antes da queda e do
pecado. Adão e Eva viveram originalmente debaixo desse pacto e sua vida
dependia da sua obediência à lei dada por Deus de forma direta em Gênesis 2.17
— não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal.8 Adão e
Eva descumpriram a sua obrigação, desobedeceram a lei e incorreram na maldição
do pacto das obras, a morte.
O pacto da graça é a manifestação graciosa e misericordiosa de Deus,
aplicando a maldição do pacto das obras à pessoa de seu Filho, Jesus Cristo,
fazendo com que parte da sua criação, primeiramente representada em Adão, e
agora representada por Cristo, pudesse ser redimida. Porém, a lei antes da
queda não se resume à ordem de não comer do fruto da árvore do conhecimento do
bem e do mal. A lei não deve ser reduzida a um aspecto somente. Existem outras
leis, implícitas e explícitas, no texto bíblico. Por exemplo, a descrição das
bênçãos em Gênesis 1.28 aparece nos imperativos sede fecundos, multiplicai-vos,
enchei a terra e dominai. Esses imperativos foram ordens claras do Criador a
Adão e sua esposa e, por conseguinte, eram leis. O relacionamento de Adão com o
Criador estava vinculado à obediência, a qual ele era capaz de exercer e assim
cumprir o papel para o qual fora criado. No entanto, o relacionamento de Adão
com Deus não se limitava à obediência. Esse relacionamento, acompanhado de
obediência, deveria expandir-se de maneira que nele o Deus criador fosse
glorificado e o ser humano pudesse ter plena alegria em servi-lo. A Confissão de Fé nos fala da lei de Deus
gravada no coração do homem (CFW 4.2). Essa lei gravada no coração do ser
humano reflete o tipo de intimidade reservada por Deus para as suas criaturas.
Nesse contexto podemos perceber que a lei tinha um papel orientador para
o ser humano. Para que o seu relacionamento com o Criador se mantivesse, o
homem deveria ser obediente e assim cumprir o seu papel. A obediência estava
associada à manutenção da bênção pactual. A não obediência estava associada à
retirada da bênção e à aplicação da maldição. A lei, portanto, tinha uma função
orientadora. O ser humano, desde o princípio, conheceu os propósitos de Deus
através da lei. Tendo quebrado a lei, ele tornou-se réu da mesma e recebeu a
clara condenação proclamada pelo Criador: a morte.
O que acontece com essa lei depois da queda e da desobediência? Ela tem
o mesmo papel? Ela possui diferentes categorias? Por que Deus continuou a
revelar a sua lei ao ser humano caído?
III. De que Lei estamos Falando?
A revelação da lei de Deus, como expressão objetiva da sua vontade,
encontra-se registrada nas Escrituras. Esse registro, que começou nos tempos de
Moisés, fala-nos da lei que Deus deu a Adão e também aos seus descendentes.
Essa lei foi revelada ao longo do tempo. Dependendo das circunstâncias e da
ocasião em que foi dada, possui diferentes aspectos, qualidades ou áreas sobre
as quais legisla. Assim, é importante observar o contexto em que cada lei é
dada, a quem é dada e qual o seu objetivo manifesto. Só assim poderemos saber a
que estamos nos referindo quando falamos de Lei.
A Confissão de Fé, no capítulo
18, divide esses aspectos em lei moral, civil e cerimonial. Cada uma tem um
papel e um tempo para sua aplicação:
(a) Lei Civil ou Judicial – representa a legislação dada à sociedade israelita ou à nação de
Israel; por exemplo, define os crimes contra a propriedade e suas respectivas
punições.
(b) Lei Religiosa ou Cerimonial – representa a legislação levítica do Velho Testamento; por exemplo,
prescreve os sacrifícios e todo o simbolismo cerimonial.
(c) Lei Moral –
representa a vontade de Deus para o ser humano, no que diz respeito ao seu
comportamento e aos seus principais deveres.
A. Toda a Lei é aplicável aos nossos dias?
Quanto à aplicação da Lei, devemos exercitar a seguinte compreensão:
(a) A Lei Civil -Tinha
a finalidade de regular a sociedade civil do estado teocrático de Israel. Como tal, não é aplicável normativamente em
nossa sociedade. Há os que erram ao
querer aplicar parte dela, sendo incoerentes, pois não conseguem aplicá-la, nem
impingi-la, em sua totalidade.
(b) A Lei Religiosa -Tinha
a finalidade de imprimir nos homens a santidade de Deus e apontar para o
Messias, Cristo, fora do qual não há esperança. Como tal, foi cumprida com sua vinda. Há os que erram ao querer
aplicar parte da mesma nos dias de hoje e ao mesclá-la com a Lei Civil.
(c) A Lei Moral -Tem
a finalidade de deixar bem claro ao homem os seus deveres, revelando suas
carências e auxiliando-o a discernir entre o bem e o mal. Como tal, é aplicável em todas as épocas e ocasiões.Há os que acertam ao considerá-la válida, porém erram ao
confundi-la e ao mesclá-la com as outras
duas, prescrevendo um aplicação confusa e desconexa.9
Assim sendo, é fundamental que, ao ler o texto bíblico, saibamos
identificar a que tipo de lei o texto se refere e conhecer, então, a
aplicabilidade dessa lei ao nosso contexto. As leis civis e cerimoniais de
Israel não têm um caráter normativo para o povo de Deus em nossos dias,
ainda que possam ter outra função como, por exemplo, ensinar-nos princípios
gerais sobre a justiça de Deus. Portanto, a lei que permanece “vigente” em
nossa e em todas as épocas é a lei moral de Deus. Ela valeu para Adão assim
como vale para nós hoje. Isto implica que estamos, hoje, debaixo da lei?
B. Estamos sob a Lei ou sob a Graça de Deus?
Muitas interpretações erradas podem resultar de um entendimento falho
das declarações bíblicas de que “não estamos debaixo da lei, e sim da graça”
(Romanos 6.14). Se considerarmos que os três aspectos da lei de Deus
apresentados acima são distinções bíblicas, podemos afirmar:
(a) Não estamos sob a Lei Civil de Israel, mas sob o período da graça de Deus, em que
o evangelho atinge todos os povos, raças, tribos e nações.
(b) Não estamos sob a Lei Religiosa de Israel, que apontava para o Messias, foi cumprida
em Cristo, e não nos prende sob nenhuma de suas ordenanças cerimoniais, uma vez
que estamos sob a graça do evangelho de Cristo, com acesso direto ao trono,
pelo seu Santo Espírito, sem a intermediação dos sacerdotes.
(c) Não estamos sob a condenação da Lei Moral de Deus, se fomos resgatados pelo seu sangue, e nos
achamos cobertos por sua graça. Não estamos, portanto, sob a lei, mas sob a
graça de Deus, nesses sentidos.
Entretanto...
(a) Estamos sob a Lei Moral de Deus, no sentido de que ela continua representando a soma de nossos deveres
e obrigações para com Deus e para com o nosso semelhante.
(b) Estamos sob a Lei Moral de Deus, no sentido de que ela, resumida nos Dez Mandamentos, representa o
caminho traçado por Deus no processo de santificação
efetivado pelo Espírito Santo em nossa pessoa (João 14.15). Nos dois últimos
aspectos, a própria Lei Moral de Deus é uma expressão de sua graça,
representando a revelação objetiva e proposicional de sua vontade.10
IV. Os Três usos da Lei11
Para esclarecer a função da lei de Deus dada por intermédio de Moisés12
nas diferentes épocas da revelação, Calvino usou a seguinte terminologia:
A. O Primeiro Uso da Lei: Usus Theologicus
É a função da lei que revela e torna ainda maior o pecado humano. Segue
o ensino de Paulo em Romanos 3.20 e 5.20:
...visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em
razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado.
Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa; mas onde abundou o pecado,
superabundou a graça.13
Calvino aponta para esse papel da lei diante da realidade do homem
caído. Sendo o pecado abundante, vivemos no tempo em que a lei exerce o
“ministério da morte” (2 Co 3.7) e, por conseguinte, “opera a ira” (Rm 4.15).
Cabe aqui uma nota sobre a terminologia dos reformadores (especialmente
Calvino) a respeito da lei. A palavra lei é usada em pelo menos dois sentidos
distintos, que devem ser entendidos a partir do contexto. Em alguns casos o
termo lei é usado como um sinônimo de Antigo Testamento, da mesma forma como
Evangelho é usado como um sinônimo de Novo Testamento. Em outros contextos o
termo lei é usado como uma categoria especial referente ao seu uso como
categoria de comando, um mandamento direto expressando a vontade absoluta de
Deus sobre alguma coisa, sem promessa. É dessa forma que Calvino interpreta a
lei em 2 Co 3.7, Rm 4.15 e 8.15. Nesse sentido, o binômio que se confirma é o
binômio Lei x Evangelho. O mandamento que não traz salvação versus a graça
salvadora de Deus. Porém, não podemos esquecer que é o próprio Antigo
Testamento que nos apresenta a promessa da salvação de Deus, a sua graça
operante sobre os crentes da antiga dispensação.
Em Romanos, Paulo aponta para a perfeição da lei, que, se obedecida,
seria suficiente para a salvação. Porém, nossa natureza carnal confronta-se com
a perfeição da lei, e essa, dada para a vida, torna-se em ocasião de morte. Uma
vez que todos são comprovadamente transgressores da lei, ela cumpre a função de
revelar a nossa iniqüidade.
Explicando isso, Calvino comenta:
Ainda que o pacto da graça se ache contido na lei, não obstante Paulo o
remove de lá; porque ao contrastar o evangelho com a lei, ele leva em
consideração somente o que fora peculiar à lei em si mesma, ou seja, ordenança e proibição, refreando assim os transgressores com a ameaça de morte.
Ele atribui à lei suas próprias qualificações, mediante as quais ela difere do
evangelho. Contudo, pode-se preferir a seguinte afirmação: “Ele só apresenta a
lei no sentido em que Deus, nela, se pactua conosco em relação às obras.14
B. O Segundo Uso da Lei: Usus Civilis
É a função da lei que restringe o pecado humano, ameaçando com punição
as faltas contra ela mesma.15 É certo que essa função da lei
não opera nenhuma mudança interior no coração humano, fazendo-o justo ou reto
ao obedecê-la. A lei opera assim como um freio, refreando “as mãos de uma ação
extrema.”16 Portanto, pela lei somente o homem não se torna
submisso, mas é coagido pela força da lei que se faz presente na sociedade
comum. É exatamente isto que permite aos seres humanos uma convivência social.
Vivemos em sociedade para nos proteger uns dos outros. Com o tempo, o homem
pode aprender a viver com tranqüilidade por causa da lei de Deus que nos
restringe do mal. O homem é capaz, por causa da lei de Deus, de copiá-la para o
seu próprio bem. É até mesmo capaz de criar leis que refletem princípios da
justiça de Deus. Calvino menciona o texto de 1 Timóteo 1.9-10 para mostrar essa
função da lei:
...tendo em vista que não se
promulga lei para quem é justo, mas para transgressores e rebeldes,
irreverentes e pecadores, ímpios e profanos, parricidas e matricidas,
homicidas, impuros, sodomitas, raptores de homens, mentirosos, perjuros e para
tudo quanto se opõe à sã doutrina...
Assim, a lei exerce o papel de coerção para esses transgressores e evita
que esse tipo de mal se alastre ainda mais amplamente no seio da sociedade
humana. Essa ação inibidora da lei cumpre ainda um outro papel importante no
caso dos eleitos não regenerados. Ela serve como um aio, um condutor a Cristo,
como diz Paulo em Gálatas 3.24: “...de
maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que
fôssemos justificados por fé.” Dessa forma ela serviu à sociedade judia e
serve à sociedade humana como um todo. Da mesma forma essa lei serve ao eleito
ainda não regenerado. Ele, antes da manifestação da sua salvação, é ajudado
pela lei a não cometer atrocidades, não como uma garantia de que não fará algo
terrível, mas como uma ajuda, pelo temor da punição.
C. O Terceiro Uso da Lei
Esse uso da lei só é válido para os cristãos — ensina-os, a cada dia,
qual a vontade de Deus.17 Segundo o texto de Jeremias 31.33, a
lei de Deus seria escrita na mente e no coração dos crentes:
Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois
daqueles dias, diz o SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também
no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.
Se a lei de Deus está impressa na mente e escrita no coração dos
crentes, qual a função da lei escrita por Moisés? Ela é realmente necessária?
Não basta um coração convertido, amoroso e cheio de compaixão para conhecer a
vontade de Deus? A “lei do amor” e a consciência do cristão orientado pelo
Espírito Santo não bastam? Não seria suficiente apenas termos a paz de Cristo
como árbitro de nossos corações? (Cl 3.15).
Creio que não é bem assim. A lei, assim como no Éden, tem ainda um papel
orientador para os cristãos. Embora eles sejam guiados pelo Espírito de Deus,
vivendo e dependendo tão somente da sua maravilhosa graça, a “lei é o melhor
instrumento mediante o qual melhor aprendam cada dia, e com certeza maior, qual
seja a vontade de Deus, a que aspiram, e se lhes firme na compreensão.”18 A
paz de Cristo como o árbitro dos corações só é clara quando conhecemos com
clareza a vontade de Deus expressa na sua lei. Deus expressa sua vontade na sua
lei e essa se torna um prazer para o crente, não uma obrigação. Calvino
exemplifica com a figura do servo que de todo o coração se empenha em servir o
seu senhor, mas que, para ainda melhor servi-lo, precisa conhecer e entender
mais plenamente aquele a quem serve. Assim, o crente, procurando melhor servir
ao seu Senhor empenha-se em conhecer a sua vontade revelada de maneira clara e
objetiva na lei.
A lei também serve como exortação para o crente. Ainda que convertidos
ao Senhor, resta em nós a fraqueza da carne, que pode ser, no linguajar de
Calvino, chicoteada pela lei, não permitindo que estejamos à mercê da inércia
da mesma.
Vejamos alguns exemplos do relacionamento entre o crente do Antigo
Testamento e o terceiro uso a lei. Primeiramente, podemos observar o prazer do
salmista ao falar da lei no Salmo 19.7-14:
A lei do SENHOR é perfeita e restaura a alma; o testemunho do SENHOR é
fiel e dá sabedoria aos símplices.
Os preceitos do SENHOR são retos e alegram o coração; o mandamento do
SENHOR é puro e ilumina os olhos.
O temor do SENHOR é límpido e permanece para sempre; os juízos do SENHOR
são verdadeiros e todos igualmente justos.
São mais desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são
mais doces do que o mel e o destilar dos favos.
Além disso, por eles se admoesta o teu servo; em os guardar, há grande
recompensa.
Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me
são ocultas.
Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então,
serei irrepreensível e ficarei livre de grande transgressão.
As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis
na tua presença, SENHOR, rocha minha e redentor meu.
Que princípio de morte opera nessa lei, segundo o salmista? Nenhum. Para
o regenerado, o crente no Senhor, a lei é prazer, é desejável, inculca temor,
restaura a alma e lhe dá sabedoria. Isso de alguma forma parece contradizer os
ensinos do Novo Testamento. O terceiro uso da lei é claro para o salmista. A
lei em si não faz nenhuma dessa coisas, mas para o coração regenerado ela traz
prazer e alegria. Na lei o salmista reconhece a sua rocha, o seu redentor,
Jesus Cristo: “rocha minha e redentor meu.”
Observe também o Salmo 119.1-20:
Bem-aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do
SENHOR.
Bem-aventurados os que guardam as suas prescrições e o buscam de todo o
coração; não praticam iniqüidade e andam nos seus caminhos.
Tu ordenaste os teus mandamentos, para que os cumpramos à risca.
Tomara sejam firmes os meus passos, para que eu observe os teus
preceitos.
Então, não terei de que me envergonhar, quando considerar em todos os
teus mandamentos.
Render-te-ei graças com integridade de coração, quando tiver aprendido
os teus retos juízos.
Cumprirei os teus decretos; não me desampares jamais.
De que maneira poderá o jovem guardar puro o seu caminho? Observando-o
segundo a tua palavra.
De todo o coração te busquei; não me deixes fugir aos teus mandamentos.
Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti.
Bendito és tu, SENHOR; ensina-me os teus preceitos.
Com os lábios tenho narrado todos os juízos da tua boca.
Mais me regozijo com o caminho dos teus testemunhos do que com todas as riquezas.
Meditarei nos teus preceitos e às tuas veredas terei respeito.
Terei prazer nos teus decretos; não me esquecerei da tua palavra.
Sê generoso para com o teu servo, para que eu viva e observe a tua
palavra.
Desvenda os meus olhos, para que eu contemple as maravilhas da tua lei.
Sou peregrino na terra; não escondas de mim os teus mandamentos.
Consumida está a minha alma por desejar, incessantemente, os teus
juízos.
De onde vem esse desejo do salmista pelos
juízos de Deus? Da lei que opera sobre o homem natural? Certamente que não. Mas
para o homem regenerado a lei de Deus se torna objeto de desejo da alma. A lei
é maravilhosa para aquele que tem os olhos abertos pelo Senhor. Amar a lei de
Deus é ensino claro das Escrituras para os regenerados. Viver na lei de Deus é
bênção para o cristão, para o salvo. Ela é o nosso orientador para melhor
conhecermos a vontade do nosso Senhor e assim melhor servi-lo. Observe que o
viver segundo a lei de Deus é considerado uma bem-aventurança, é como ter fome
e sede de justiça.
Pergunto: O que seria do cristão sem a lei para orientá-lo? Como
conheceria ele a vontade de Deus? (essa, aliás, é uma das perguntas mais
freqüentes entre os crentes no seu dia-a-dia). Ele seria um perdido, buscando
respostas em seu próprio coração, na igreja, no consenso eclesiástico, na
autoridade de alguém que considerasse superior. Mas o crente tem a lei de Deus,
expressando objetivamente qual é o desejo do Criador para a criatura, qual o
desejo do Pai para seus filhos.
Mas essa visão da lei não nos traz de volta ao legalismo? Estamos então
novamente debaixo da lei? Certamente que não. Para bem entendermos a posição
bíblica expressa por Calvino sobre a lei no pacto da graça, precisamos entender
também como ele relaciona Cristo e a Lei.
V. Cristo e a Lei
Precisamos entender que Cristo satisfez e cumpriu a lei de forma plena e
completa. Ele não veio revogar a lei. Façamos uma breve análise de Mateus
5.17-19:
Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar,
vim para cumprir. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem,
nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois,
que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos
homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os
observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus.
Alguns pontos interessantes são demonstrados
por Jesus nessa passagem:
(a) Ele veio cumprir a lei e não revogá-la.
(b) A lei seria cumprida totalmente, em todas as suas exigências e em
todas as suas modalidades (moral, cerimonial e civil) enquanto houvesse sentido
em fazê-lo.
(c) Aquele que viola a lei pode chegar ao Reino dos Céus! (“aquele que
violar...será considerado mínimo no reino dos céus.”) O sermão do monte é um
sermão para crentes e o texto pode ser entendido dessa forma.
(d) Aquele que cumpre a lei será considerado grande no Reino dos Céus.
Como entender essas conclusões de Jesus com
respeito a si mesmo e à Lei?
(a) Ele veio cumprir a lei e de fato a cumpriu em todas as suas
dimensões: cerimonial, civil e moral. Não houve qualquer aspecto da lei para o
qual Cristo não pudesse atentar e cumprir. Cristo cumpriu a lei de forma
perfeita, sendo obediente até a própria morte. Ele tomou sobre si a maldição da
lei. Ele se torna o fundamento da justificação para o eleito.
(b) Ele não só cumpriu a lei perfeitamente, mas também interpretou a lei
de forma perfeita, permitindo aos que comprou na cruz, entendê-la de forma mais
completa, mais abrangente.
(c) Os que nele crêem agora também podem cumprir os aspectos necessários
da lei para uma vida santa. No entanto, esses que por ele são salvos não são
mais dependentes da lei para a sua salvação. Por isso há uma diferença clara
entre os que chegam ao Reino dos
Céus: alguns serão considerados maiores do que outros.
(d) Cristo, ao cumprir a lei, ab-roga a maldição da lei, mas não a sua
magisterialidade.19 A lei continua com o seu papel de ensinar
ao ser humano a vontade de Deus. A ab-rogação da maldição da lei é aquilo a que
Paulo se refere em textos como Rm 6.14 e Gl 2.16 — estamos debaixo da graça! A
lei continua no seu papel de nos ensinar,
pela obra do Espírito Santo. Não somos mais condenados pela lei nem servos da mesma. A lei, por expressar a
vontade de Deus, se nos torna
um prazer.
Johnson resume o material sobre Cristo e a lei no pensamento de Calvino
da seguinte forma:
O ponto principal, claro, é que Cristo cumpriu a lei em todos os
aspectos, seja no vivê-la, no submeter-se à maldição da lei para satisfazer a
sua exigência de punição dos transgressores, ou restabelecendo sobre outras
bases a possibilidade de cumprir aquilo que a lei requer. Cristo, em outras
palavras, satisfez tudo o que a lei exigiu ou pode vir a exigir da humanidade.
A justificação que estava associada à lei agora pertence completamente a
Cristo.20
Portanto, nossa obediência à lei não acontece e não pode acontecer sem
Cristo. Tentar viver debaixo da lei, sem Cristo, é submeter-se à escravidão.
Porém, obedecer à lei com Cristo é prazer e vida. Também, nesse sentido, Cristo
é o fim da lei!
Conclusão
Como fica o aparente paradoxo inicial entre a Lei e Graça? Como corrigir
essa visão distorcida? Mais uma vez creio que a visão correta da Confissão de Fé pode nos ajudar a
entendê-lo:
Este pacto da graça é freqüentemente apresentado nas Escrituras pelo
nome de Testamento, em referência à morte de Cristo, o testador, e à perdurável
herança, com tudo o que lhe pertence, legada neste pacto.
Este pacto no tempo da lei não foi administrado como no tempo do
Evangelho. Sob a lei foi administrado por promessas, profecias, sacrifícios,
pela circuncisão, pelo cordeiro pascoal e outros tipos e ordenanças dadas ao
povo judeu, prefigurando, tudo, Cristo que
havia de vir; por aquele tempo essas coisas, pela operação do Espírito Santo,
foram suficientes e eficazes para instruir e edificar os eleitos na fé do
Messias prometido, por quem tinham plena remissão dos pecados e a vida eterna:
essa dispensação chama-se o Velho Testamento.
Sob o Evangelho, quando foi manifestado Cristo, a substância, as
ordenanças pelas quais este pacto é dispensado são a pregação da palavra e a
administração dos sacramentos do batismo e da ceia do Senhor; por estas
ordenanças, posto que poucas em número e administradas com maior simplicidade e
menor glória externa, o pacto é manifestado com maior plenitude, evidência e
eficácia espiritual, a todas as nações, aos judeus bem como aos gentios. É
chamado o Novo Testamento. Não há, pois, dois pactos de graça diferentes em
substância mas um e o mesmo sob várias dispensações (CFW 7.4–6).
Portanto, ao relacionarmos lei e graça devemos nos lembrar dos diversos
aspectos e nuanças que estão envolvidos nesses termos.
Primeiramente, encontramos tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, a
graça de Deus. Ele não reserva a sua graça somente para o período do Novo
Testamento como muitos pensam. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamento
podemos ver Deus agindo graciosamente, salvando aqueles que crêem na promessa
do Redentor. Assim Abel, Enoque, Noé, Abraão e todos os santos do Antigo
Testamento foram remidos. Nenhum deles foi salvo por obediência à Lei, ainda
que o Senhor requeresse deles, assim como requer de nós, que sejamos
obedientes.
Em segundo lugar, a lei opera para vida ou morte no pacto das obras e
somente para a morte no pacto da graça. No pacto das obras, por mérito, o homem
poderia continuar vivo e merecer a “árvore da vida.” Portanto, pela obediência
o homem viveria. No pacto da graça a lei opera para condenação do homem caído.
Porque o homem já está condenado, ele não pode mais cumprir a lei e ela lhe
serve para a morte.
Por último, o crente se beneficia da lei estando debaixo da obra
redentora de Cristo. O mérito de Cristo, sendo obediente à lei até as últimas
conseqüências, compra-nos o benefício da salvação e a graça de conhecermos a
vontade de Deus pela sua lei. O único modo de o ser humano ser salvo é submeter-se
totalmente àquele que, por mérito, compra-lhe a salvação. Ainda aqui o homem é
beneficiado pela Lei. Cristo a cumpre e declara justificado aquele por quem ele
morre.
Portanto, o nosso gráfico do início deveria ser modificado para refletir
a verdade bíblica sobre a Lei e a Graça de Deus:
Disp. do Antigo Testamento
------------------ Disp. do Novo
Testamento
|
|
Obras
|
Graça – obras como fruto da fé
|
Lei
|
Evangelho – obediência à lei como conseqüência
|
Lei –justifica na
obediência |
Lei – condena o não eleito
Usus Theologicus |
“Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e
aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e me
manifestarei a ele” (João 14.21).
Ev. Carlos Borges(CABB)
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