Para esclarecer a função da lei de Deus dada por intermédio de Moisés12
nas diferentes épocas da revelação, Calvino usou a seguinte terminologia:
A. O Primeiro Uso da Lei: Usus Theologicus
É a função da lei que revela e torna ainda maior o pecado humano. Segue
o ensino de Paulo em Romanos 3.20 e 5.20:
...visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em
razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado.
Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa; mas onde abundou o pecado,
superabundou a graça.13
Calvino aponta para esse papel da lei diante da realidade do homem
caído. Sendo o pecado abundante, vivemos no tempo em que a lei exerce o
“ministério da morte” (2 Co 3.7) e, por conseguinte, “opera a ira” (Rm 4.15).
Cabe aqui uma nota sobre a terminologia dos reformadores (especialmente
Calvino) a respeito da lei. A palavra lei é usada em pelo menos dois sentidos
distintos, que devem ser entendidos a partir do contexto. Em alguns casos o
termo lei é usado como um sinônimo de Antigo Testamento, da mesma forma como
Evangelho é usado como um sinônimo de Novo Testamento. Em outros contextos o
termo lei é usado como uma categoria especial referente ao seu uso como
categoria de comando, um mandamento direto expressando a vontade absoluta de
Deus sobre alguma coisa, sem promessa. É dessa forma que Calvino interpreta a
lei em 2 Co 3.7, Rm 4.15 e 8.15. Nesse sentido, o binômio que se confirma é o
binômio Lei x Evangelho. O mandamento que não traz salvação versus a graça
salvadora de Deus. Porém, não podemos esquecer que é o próprio Antigo
Testamento que nos apresenta a promessa da salvação de Deus, a sua graça
operante sobre os crentes da antiga dispensação.
Em Romanos, Paulo aponta para a perfeição da lei, que, se obedecida,
seria suficiente para a salvação. Porém, nossa natureza carnal confronta-se com
a perfeição da lei, e essa, dada para a vida, torna-se em ocasião de morte. Uma
vez que todos são comprovadamente transgressores da lei, ela cumpre a função de
revelar a nossa iniqüidade.
Explicando isso, Calvino comenta:
Ainda que o pacto da graça se ache contido na lei, não obstante Paulo o
remove de lá; porque ao contrastar o evangelho com a lei, ele leva em
consideração somente o que fora peculiar à lei em si mesma, ou seja, ordenança e proibição, refreando assim os transgressores com a ameaça de morte.
Ele atribui à lei suas próprias qualificações, mediante as quais ela difere do
evangelho. Contudo, pode-se preferir a seguinte afirmação: “Ele só apresenta a
lei no sentido em que Deus, nela, se pactua conosco em relação às obras.14
B. O Segundo Uso da Lei: Usus Civilis
É a função da lei que restringe o pecado humano, ameaçando com punição
as faltas contra ela mesma.15 É certo que essa função da lei
não opera nenhuma mudança interior no coração humano, fazendo-o justo ou reto
ao obedecê-la. A lei opera assim como um freio, refreando “as mãos de uma ação
extrema.”16 Portanto, pela lei somente o homem não se torna
submisso, mas é coagido pela força da lei que se faz presente na sociedade
comum. É exatamente isto que permite aos seres humanos uma convivência social.
Vivemos em sociedade para nos proteger uns dos outros. Com o tempo, o homem
pode aprender a viver com tranqüilidade por causa da lei de Deus que nos
restringe do mal. O homem é capaz, por causa da lei de Deus, de copiá-la para o
seu próprio bem. É até mesmo capaz de criar leis que refletem princípios da
justiça de Deus. Calvino menciona o texto de 1 Timóteo 1.9-10 para mostrar essa
função da lei:
...tendo em vista que não se
promulga lei para quem é justo, mas para transgressores e rebeldes,
irreverentes e pecadores, ímpios e profanos, parricidas e matricidas,
homicidas, impuros, sodomitas, raptores de homens, mentirosos, perjuros e para
tudo quanto se opõe à sã doutrina...
Assim, a lei exerce o papel de coerção para esses transgressores e evita
que esse tipo de mal se alastre ainda mais amplamente no seio da sociedade
humana. Essa ação inibidora da lei cumpre ainda um outro papel importante no
caso dos eleitos não regenerados. Ela serve como um aio, um condutor a Cristo,
como diz Paulo em Gálatas 3.24: “...de
maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que
fôssemos justificados por fé.” Dessa forma ela serviu à sociedade judia e
serve à sociedade humana como um todo. Da mesma forma essa lei serve ao eleito
ainda não regenerado. Ele, antes da manifestação da sua salvação, é ajudado
pela lei a não cometer atrocidades, não como uma garantia de que não fará algo
terrível, mas como uma ajuda, pelo temor da punição.
C. O Terceiro Uso da Lei
Esse uso da lei só é válido para os cristãos — ensina-os, a cada dia,
qual a vontade de Deus.17 Segundo o texto de Jeremias 31.33, a
lei de Deus seria escrita na mente e no coração dos crentes:
Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois
daqueles dias, diz o SENHOR: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também
no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo.
Se a lei de Deus está impressa na mente e escrita no coração dos
crentes, qual a função da lei escrita por Moisés? Ela é realmente necessária?
Não basta um coração convertido, amoroso e cheio de compaixão para conhecer a
vontade de Deus? A “lei do amor” e a consciência do cristão orientado pelo
Espírito Santo não bastam? Não seria suficiente apenas termos a paz de Cristo
como árbitro de nossos corações? (Cl 3.15).
Creio que não é bem assim. A lei, assim como no Éden, tem ainda um papel
orientador para os cristãos. Embora eles sejam guiados pelo Espírito de Deus,
vivendo e dependendo tão somente da sua maravilhosa graça, a “lei é o melhor
instrumento mediante o qual melhor aprendam cada dia, e com certeza maior, qual
seja a vontade de Deus, a que aspiram, e se lhes firme na compreensão.”18 A
paz de Cristo como o árbitro dos corações só é clara quando conhecemos com
clareza a vontade de Deus expressa na sua lei. Deus expressa sua vontade na sua
lei e essa se torna um prazer para o crente, não uma obrigação. Calvino
exemplifica com a figura do servo que de todo o coração se empenha em servir o
seu senhor, mas que, para ainda melhor servi-lo, precisa conhecer e entender
mais plenamente aquele a quem serve. Assim, o crente, procurando melhor servir
ao seu Senhor empenha-se em conhecer a sua vontade revelada de maneira clara e
objetiva na lei.
A lei também serve como exortação para o crente. Ainda que convertidos
ao Senhor, resta em nós a fraqueza da carne, que pode ser, no linguajar de
Calvino, chicoteada pela lei, não permitindo que estejamos à mercê da inércia
da mesma.
Vejamos alguns exemplos do relacionamento entre o crente do Antigo
Testamento e o terceiro uso a lei. Primeiramente, podemos observar o prazer do
salmista ao falar da lei no Salmo 19.7-14:
A lei do SENHOR é perfeita e restaura a alma; o testemunho do SENHOR é
fiel e dá sabedoria aos símplices.
Os preceitos do SENHOR são retos e alegram o coração; o mandamento do
SENHOR é puro e ilumina os olhos.
O temor do SENHOR é límpido e permanece para sempre; os juízos do SENHOR
são verdadeiros e todos igualmente justos.
São mais desejáveis do que ouro, mais do que muito ouro depurado; e são
mais doces do que o mel e o destilar dos favos.
Além disso, por eles se admoesta o teu servo; em os guardar, há grande
recompensa.
Quem há que possa discernir as próprias faltas? Absolve-me das que me
são ocultas.
Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então,
serei irrepreensível e ficarei livre de grande transgressão.
As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis
na tua presença, SENHOR, rocha minha e redentor meu.
Que princípio de morte opera nessa lei, segundo o salmista? Nenhum. Para
o regenerado, o crente no Senhor, a lei é prazer, é desejável, inculca temor,
restaura a alma e lhe dá sabedoria. Isso de alguma forma parece contradizer os
ensinos do Novo Testamento. O terceiro uso da lei é claro para o salmista. A
lei em si não faz nenhuma dessa coisas, mas para o coração regenerado ela traz
prazer e alegria. Na lei o salmista reconhece a sua rocha, o seu redentor,
Jesus Cristo: “rocha minha e redentor meu.”
Observe também o Salmo 119.1-20:
Bem-aventurados os irrepreensíveis no seu caminho, que andam na lei do
SENHOR.
Ev. Carlos Borges(CABB)
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